26 março, 2007

Mais um passo para a democracia, com consciência que muito há que fazer...

Mulher na democracia não é biombo de sala


Há 150 anos, no dia 8 de Março de 1857, teve lugar aquela que terá sido uma das primeiras acções organizada por mulheres operárias.
Centenas de mulheres operárias em fábricas de vestuário e têxteis de Nova Iorque, iniciaram uma marcha de protesto contra as condições de trabalho com que se deparavam. Reivindicavam melhores condições de trabalho: redução da carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam dezasseis horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. Esta acção grevista teve um desfecho trágico – a morte de cento e trinta mulheres operárias, que foram encurraladas dentro de uma fábrica onde deflagrou um incêndio, que pouco terá tido de acidental.
Somente em 1910, numa conferência mundial decorrida na Dinamarca, a revolucionária Clara Zetkin propõe o dia 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher, sendo desde 1975 assumida pelas Nações Unidas.
O dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, homenageia todas as mulheres trabalhadoras e simboliza a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres.
Uma luta que continua a fazer parte do presente, apesar dos avanços que se foram conquistando para a construção de uma cidadania, também ela escrita no feminino.
Muitos discursos têm vindo a reforçar a ideia que as mulheres “ocuparam o seu lugar na sociedade”, através da sua afirmação como pessoas autónomas e participativas no mundo do trabalho e da política... Contudo, embora as mulheres tenham conseguido, através de grande luta, a ampliação dos seus direitos... essa ideia não revela a verdade!
As mulheres continuam a constituir a maioria da população no limiar da sobrevivência.
Na África e Ásia, as mulheres representam três quartos da população analfabeta. Em média, o salário das mulheres é quase quarenta por cento mais baixo do que aquele que é pago aos homens, por idêntico trabalho. A violência contra as mulheres continua a ser um grave problema que vai contra os direitos humanos. Violência que emerge no seio da família, por aqueles que lhe estão mais próximos, quer fisicamente, quer afectivamente. Violência que se traduz pelo tráfico sexual das mulheres, pela mutilação genital feminina (que segundo estimativas da Amnistia Internacional, acusa para um número de dois milhões de mulheres que são submetidas anualmente a esta violação dos seus direitos), pela prostituição, pelo assédio e violação sexual, pelo infanticídio ou aborto selectivo ( nos paises mais empobrecidos o nascer do sexo feminino pode ser o sinónimo de maus tratos ou de morte)... pela feminização da pobreza, pela feminização do desemprego (que no distrito de Aveiro é bastante significativo), pela dupla jornada (em que uma delas se sustenta em trabalho não pago)...
É este o “espaço ocupado pelas mulheres”, que não desejamos!
O slogan “Pão e Rosas”, gritado por 14 mil mulheres em 1908, em Nova Iorque, continua actual na reivindicação de maior estabilidade económica e melhor qualidade de vida para as mulheres portuguesas.
O dia 11 de Fevereiro, com a vitória do SIM no referendo à despenalização do aborto, significa uma grande vitória pela qual lutamos ao longo dos anos, na luta das mulheres portuguesas pelos seus direitos.
A vitória do Sim permitiu que «as portas que Abril abriu» se abrissem também para as mulheres. Durante 32 anos as portas da democracia mantiveram-se entreabertas para as mulheres. Escancará-las é tarefa de todos aqueles e de todas aquelas que continuam a querer construir Abril.
Uma das consequências directas da vitória do Sim no referendo é o entendimento da maternidade como um direito, como uma escolha, e não como uma fatalidade ou castigo. Concretizar esta ideia passa não só pela aplicação da lei do aborto mas também pela regulamentação da lei da procriação medicamente assistida. Passa pela educação para uma sexualidade sem mitos nem vendas, onde o prazer e a responsabilidade se tornam sinónimos. Mas para que a sexualidade e a maternidade sejam realmente percebidas e vividas como direitos é necessário que os serviços públicos, sejam os educativos, sejam os de saúde, os assumam como tarefas e valores da «democracia de alta intensidade».
Fará sentido comemorar o 8 de Março em Portugal agora que uma das mais importantes e simbólicas batalhas pela cidadania das mulheres foi vencedora? A minha resposta é um sim inequívoco.
Como dizia Zeca Afonso, esse aveirense tão esquecido nesta cidade, «mulher na democracia não é biombo de sala». Mas onde estão e como estão as mulheres do nosso país? Como as trata a democracia? Estarão efectivamente incluídas na cidadania ou são, como diz a canção, «biombo de sala»?
Num país em que as mulheres na Assembleia da República são uma imensa minoria, num distrito em que mais de 60% do desemprego é feminino, numa sociedade em que a violência doméstica está mais generalizada do que aquilo que os números envergonhados mostram, num quotidiano em que as mulheres trabalham fora e dentro de casa, cuidam das crianças e dos mais velhos, sem que este trabalho seja pago ou sequer reconhecido pelo seu valor económico e social, num mercado que desvaloriza e inferioriza as profissões marcadamente femininas, numa publicidade que objectualiza e esteriotipa as mulheres, numa linguagem sexista que derroga e invisibiliza o feminino, numa história que oblitera metade da humanidade, numa ciência que recusa os saberes tradicionais, numa globalização que serve e se serve do patriarcado para melhor explorar, nada fazer, nem sequer o esforço crítico de compreender o mundo que nos rodeia e agir para o transformar, é não só aceitar que esta realidade não contradiz a democracia como é também recusar a cidadania para as mulheres.
Zeca Afonso dizia na mesma canção que «não há bandeira sem luta, nem não há luta sem batalha». Com ele digo eu também: escancarar as portas de Abril, colorir Maio com todas as cores da paleta, são as tarefas da democracia. Ontem como hoje, em Março como noutro mês qualquer. Todas e todos pela luta toda.

artigo publicado no Diário de Aveiro a 9 de Março

Porque são uma das minhas paixões...